domingo, 15 de agosto de 2010

Ode aos maldosos

Extraído do GEH - Grupo de Estudos Humanus - http://www.geh.com.br/


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A hipocrisia pesou àquele homem durante trinta anos. Era o mal, e consorciou-se com a probidade. Odiava a virtude com um ódio de malcasado. Teve sempre uma premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquela armadura rígida, a aparência. Era monstro internamente; vivia em uma pele de homem de bem, com um coração de bandido. Era prisioneiro da honestidade, estava fechado naquele caixão de múmia, a inocência; tinha nas costas asas de anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe demais a estima pública. Passar por homem honrado é duro! Manter constante equilíbrio, pensar mal e falar bem, que labutação! O Maldoso é o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime. Este contra-senso é o destino dele. Era-lhe preciso mostrar ares apresentáveis, escumar por baixo do nível, sorrir em vez de ranger. A virtude para ele, era cousa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquela mão que lhe tapava a boca. E querendo mordê-la, foi obrigado a beijá-la.
Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra: calcula um triunfo, e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devotar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, pôr mel no veneno, velar na programação do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita.
Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva é cousa horrível. Ajuntai a isso o profundo orgulho.
Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e, como ele, retesa-se e levanta-se. O traidor não é mais do que um déspota tolhido que não pode fazer o seu desejo senão resignar-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.
Quanto a Deus, os Maldosos curam muito pouco dessa palavra de quatro letras.
Chega-se a uma determinada lascívia na perversidade. Existe nessas tremendas profundezas morais tão pouco sondadas, uma não sei que de ostentação atroz e agradável que é a obscenidade do crime. A insipidez da falsa reputação dá apetite de vergonha. Desdenham-se os homens a ponto tal que se deseja o desprezo deles. Admira-se a franqueza da degradação. Olha-se cobiçosamente a torpeza que se mostra tão a seu gosto na ignomínia. Os olhos obrigados a baixar-se, têm muitas vezes daqueles olhares oblíquos. Nada se aproxima tanto de Messalina.
O maldoso vive debaixo do véu. O descaramento é sempre a sua ambição. É o tântalo do cinismo. Somente em sua solidão pode ser franco consigo mesmo; que volúpia é sentir-se sinceramente abominável! Todos os êxtases possíveis do inferno tem o maldoso nesses momentos de regozijo interno ao ver os resultados hediondos de sua maldade; são-lhe pagos todos os atrasos da dissimilação; a hipocrisia é um adiantamento; Satanás embolsou-o.
Tem prazer em dizer ao gênero humano: és idiota!
Só ele é espectador da sua glória. Mas ao mesmo tempo quer um pedestal. Que mais belo triunfo do que esse de ficar no centro de convergência para a atenção geral? Obrigar o olhar alheio é, para ele, uma das formas de supremacia. Os que têm o mal por ideal acham no opróbrio uma auréola. Domina-se aí. Olha-se de cima de alguma coisa. Mostra-se com soberania. Um poste, à vista de todo o universo, tem alguma analogia com o trono.
Estar exposto, é ser contemplado. O regente Jorge matando lentamente Napoleão, Nero incendiando Roma, deviam sentir um pouco daquela volúpia sonhada por todo Maldoso. A imensidade do desprezo.
Ser desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma vitória. Estas idéias em um hipócrita parecem contradição, e não são.
Toda a infâmia é conseqüente. O mel é fel. O hipócrita, sendo perverso completo, tem em si os dois pólos da perversidade. De um lado é padre, do outro cortesão. O seu sexo de demônio é duplo. O hipócrita é o horrível hermafrodita do mal. Fecunda-se a si próprio, gera-se, transmuta-se. Queres vê-lo formoso? Olha-o; queres vê-lo horrível? Vira-o.

Este texto não é do Mestre, é de Victor Hugo.

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